Still do filme "Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto"
"Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto" (Argentina, 2011) é uma reflexão ácida sobre o arrependimento e as limitações humanas, com uma trama que mistura humor e tragédia. O filme segue Ernesto, um homem comum que, após um encontro com um ser misterioso, tem a chance de voltar ao passado e corrigir erros, mas logo percebe que nem o conhecimento do futuro pode mudar sua essência. Dirigido pelos argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat, a obra oferece uma crítica à mediocridade e ao peso do ressentimento, explorando com maestria a ideia de que algumas falhas são irreparáveis. A participação especial de Alberto Laiseca (1941-2016), famoso escritor argentino de ficção sobrenatural, autor do conto que deu origem ao filme, adiciona um toque de surrealismo e sarcasmo à história. Quanto à presença de Laiesca, o crítico Luiz Antonio Ribeiro, do site Ovo de Fantasma, fez seguinte observação: "...(ele) aparece em vários momentos do filme como comentador e explicador das cenas, como se a ficção quase parabólica abrisse espaço para a questão documental e requeresse um Ombudsman não lá muito parcial". Sem dúvida, temos aqui uma inovação narrativa, no mínimo, curiosa. "Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto" está disponível no streaming À La Carte, para a sua apreciação, e o texto completo de Luiz Antônio você pode ler logo abaixo.
Crítica
Por Luiz Antonio Ribeiro
Still do filme "Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto"
O mito de Fausto me parece uma espécie de tela em branco com milhares de pequenos caminhos traçados que possibilitam diversas vias para imersão no tema. Não sei ao certo e creio que posso ousar dizer que nunca saberei do que se trata completamente o mito, ou provavelmente vou assumir no decorrer do caminho que o mito de Fausto trata de absolutamente tudo e qualquer coisa, só importando de onde e de quem se esteja olhando.
Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto (2012) de Mariano Cohn e Gastón Duprat é uma adaptação do mito que diferente das adaptações contemporâneas e tem como principal temática a questão o tempo. Nele mais que em outras adaptações como o recente Fausto (2011) de Sokurov, a questão do pacto com o diabo não tem um viés duplo de metafísica e prazer, onde o contemplado por Mefistófeles pretende atingir uma completude intelectual pelo viés material e corpóreo. Em Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto há o esgarçamento de uma relação do homem, finito, com um temporalidade divina, eterna, infinita e cíclica que, na obra, se apresenta pateticamente sem saídas.
O filme começa em Marrocos, onde bodes se alimentam em cima de árvores, em um mundo semi-mágico onde um árabe ao atravessar o deserto é atingido por dois raios em sequência. Sendo a realização às avessas do lugar comum “a chance de cair um raio em uma pessoa é uma em um milhão” e “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”, esse sujeito é premiado em segundos com a morte e a ressurreição para a vida eterna. Trata-se do Mefistófeles da obra, que em Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto é chamado de InMortal (Eusebio Poncela).
Esse sujeito viaja nos tempos, espécie de Caim, fazendo pactos com seres a fim de se divertir. É quando oferece a Ernesto (Emilio Disi), um argentino como qualquer outro, a chance de voltar ao passado para poder consertar fatos e administrar pendências adquiridas no decorrer da vida. O único combinado é: ele não pode se matar e, depois de 10 anos, retornará para aquele momento em que toma café com sua esposa (Emma Rivera), só que com um milhão de dólares para gastar como preferir.
Então, o caminho de Ernesto, creio eu, passa a ser da vivência de uma via crucis às avessas: primeiro volta alguns anos para tentar se redimir da morte de sua mãe, pedindo perdão. Busca então montar o que seria o primeiro reality show de todos os tempos, tenta avisar aos EUA sobre o ataque às Torres Gêmeas no dia anterior, mas, por conta disso é preso e torturado. Sem saída, pede ajuda a InMortal que lhe salva.
Faz então sua segunda viagem, um pouco mais para trás, enquanto jovem. Foge de casa e compõe a canção Imagine antes de John Lennon. Ganha fama, casa-se, mas sofre acusações de plágio e é levado aos tribunais. Tido como louco, é internado num manicômio, onde diz a um médico:
“Todos vocês me dão nojo. Mas são muitos. E essa é sua vantagem. Ficam amontoados nos ônibus, ficam ajoelhados nas igrejas, trabalham, acumulam para suas crias. Mas eu sou diferente. Sou feio. Sujo. Sou prejudicial. Tenho medo, doutor.”
Still do filme "Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto"
Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto é baseado em um conto do escritor argentino Alberto Laiseca que como espécie de “reasoner”, aparece em vários momentos do filme como comentador e explicador das cenas, como se a ficção quase parabólica abrisse espaço para a questão documental e requeresse um Ombudsman não lá muito parcial. Laiseca, apesar de onisciente, é também subjugado por essa ordem temporal, ou seja, até como autor se percebe incapaz de interromper ou inverter a lógica tempo-mítica que falamos acima. Suas entradas, apenas reexpõe o lugar de Ernesto em distopia, deslocado do mundo e dos outros, como um perdedor, um outsider, alguém que deveria ter sido escondido da sociedade ou não permitido nascer.
O pacto entre Ernesto e InMortal é o pacto do tempo. Um gostaria de ter outra chance, outro dá lhe a chance. O resultado é o mesmo dos outros pactos fáusticos: não é a força, a chance, o tempo, o corpo ou o amor que podem redimir quem quer que seja. Não há remissão, essa possibilidade é inválida. A vida é por demais desordenada e caótica para permitir que se façam planos, projetos e mudança.
Querida, Vou Comprar Cigarros e Já Volto é mais uma obra dos homens abandonados por Deus, mais uma obra em que a personagem duplica a imagem de Jesus em um mundo hostil rumando para a desgraça iminente, como ordem de seu criador. Ao mesmo tempo em que o Diabo, mais terreno, tenta olhar a dor do homem e tentar compensa-la com o prazer, também terreno. Não há saída.
Ernesto, quando volta para os dias atuais, resolve sumir, fazer outras coisas, mas já não há muito o que fazer. A idade, a dor, a certeza de inutilidade da ação. O mundo é sempre muito maior. Inmortal vai, viaja e encontra outro, outro que precisa de tempo. Que tempo? Um que agora sabemos que nem existe.
No fim, Laiseca diz que Ernesto volta para a vida “como um porco que anda todo podre.” E finaliza:“Cada vez penso com mais convicção que uma pessoa, só pelo fato de fazer aniversário, já é um malvado. As diversas idades de um homem, eu as denominaria de campos de concentração. A cada ano um arame farpado a mais. Trinta já é Auschwitz. Falo sério.”
É esse o tempo. É esse o tempo de que ele fala. O tempo de uma imagem recorrente, o tempo de uma tartaruga.
Comments