Stefano Dionisi no filme "Farinelli"
"Farinelli" (França/Itália/Bélgica/Reino Unido, 1984) tem a assinatura de um talentoso diretor, Gérard Corbiau. Ele, que nasceu em Bruxelas (Bélgica), mesmo tendo realizado apenas quatro filmes, até hoje, conseguiu levar por duas vezes o seu país a competir no Oscar de Melhor Filme Estrangeiro: primeiro com "Mestre da Música", em 1989, e depois com "Farinelli", em 1995, esta maravilha de filme que você encontra no streaming Belas Artes À La Carte. Baseado em uma extraordinária história real, o longa é sobre a vida do cantor de ópera castrado Carlo Broschi, que cativou o público europeu do século 18 com seu nome artístico Farinelli.
Com suas liberdades poéticas, o filme retrata Farinelli através da figura bela e máscula do ator Stefano Dionisi, bem diferente do aspecto original do biografado, que era franzino, frágil e tinha seios. Segundo a opinião de Luís Antônio Giron, em sua crítica publicada na Folha de S. Paulo, "Corbiau exagera nas cenas de sexo. Farinelli só faz amor se as parceiras aceitarem a participação do seu irmão. Um toque de libertinagem moderna que pouco tem a ver com a do século 18”. Mas nada disso compromete a importância dessa obra, que merece ser vista e ouvida como uma grande ópera. Leia abaixo o texto completo de Giron, e não deixe de assistir ao filme assim que tiver uma oportunidade.
"Farinelli" converte divo em galã iluminista
Por Luís Antônio Giron
Stefano Dionisi no filme "Farinelli"
O filme "Farinelli" resgata de maneira poética um fato artístico que o ocidente procurou esquecer neste século, até porque os maneirismos e exageros rococós dos castrati não se coadunam com o desejo de pureza formal que predominou na arte desde o Iluminismo.
Farinelli é retratado como um avatar dessa ânsia da forma correta. Como um verdadeiro precursor do Iluminismo, passa a vida preocupado em racionalizar e enxugar a música que interpreta.
Condena o irmão, Riccardo (Enrico Lo Verso), por ter ofuscado a arte no fogo de artifício dos ornamentos e se aproxima do compositor Haendel (1685-1759).
Ora, o Farinelli histórico é o avesso do personagem de Corbiau. Como todo filme sobre música, o do diretor belga idealiza exageradamente o gênio e investe em longas sequências musicais. Para quem não gosta de Barroco, pode virar um suplício.
Cena do filme "Farinelli"
Corbiau estreou no cinema com "O Mestre da Música" (1987), um trabalho que busca traduzir em imagens o êxtase provocado por algumas árias de ópera.
Agora mostra Farinelli como um esteta paradoxal, além do que fisicamente másculo. Basta comparar ator Stefano Dionisi com o retrato do cantor para se ter uma idéia do disparate. Farinelli era esbelto, mas tinha seios e um olhar hermafrodita. O ator interpreta-o como um heterossexual convicto que só desmunheca no palco.
"O senhor é o primeiro homem que me provocou um orgasmo musical", diz uma condessa, que o assedia. Corbiau exagera nas cenas de sexo. Farinelli só faz amor se as parceiras aceitarem a participação do seu irmão. Um toque de libertinagem moderna que pouco tem a ver com a do século 18.
Os castrati foram os espantalhos estéticos de todos os tratados musicais desde Rameau, em meados do século 18. De fato, só trocaram a postura virtuosística pela economia por essa época, quando Farinelli já havia se aposentado. Ele encerrou a carreira aos 32 anos, para servir o rei da Espanha.
O Farinelli real viveu do exibicionismo das árias de bravura. Era um sopranista, capaz de atingir do superagudo ao dó grave do tenor, abarcando três oitavas.
Em suas apresentações, atuava como um malabarista vocal. No filme, essas qualidades não ficam tão explícitas. Dionisi move os lábios de maneira estereotipada e se nota que a voz vem de outro ponto. Outra infidelidade é ele aparecer sozinho no palco. A ópera rococó era populosa.
O aspecto mais interessante do filme está na leitura do trauma da castração. É bem provável que Farinelli se atormentasse com a perda dos testículos. No final, Haendel chama-o de castrado e dispara: "Você castrou minha imaginação". Parece até que o compositor alemão antevia a obra de Freud. E que um castrado fosse capaz de tamanho corte epistemológico.
Cena do filme "Farinelli"
Filme: Farinelli, Il Castrato
Produção: França, Bélgica, Itália e Reino Unido 1994
Diretor: Gérard Corbiau
Elenco: Stefano Dionisi, Enrico Lo Verso, Caroline Cellier, Jeroen Krabbe e Elza Zylberstein
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