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A LONGA CAMINHADA | NICOLAS ROEG | 1971 | REINO UNIDO/AUSTRÁLIA


Cena do filme "A longa caminhada"


O cineasta britânico Nicolas Roeg (1928 – 2018) começou no cinema como diretor de fotografia, e seu nome, exercendo essa função, pode ser visto nos créditos de clássicos como "Fahrenheit 451" (1966), de François Truffaut, e "Longe Deste Insensato Mundo" (1967), de John Schlesinger.

Em 1970, enfim, ele estreou na direção com o longa-metragem "Performance", protagonizado por Mick Jagger, uma experiência cinematográfica revolucionária, que rompia de maneira pouco (ou nunca) vista antes a relação tempo-espaço.

Depois de realizar o sobrenatural "Inverno de Sangue em Veneza" (1973), veio o cult "O Homem Que Caiu na Terra" (1976), estrelado por David Bowie no papel de um charmoso extraterrestre que enriquece neste planeta comercializando suas tecnologias avançadas para os humanos.

Como deu para perceber, Nicolas Roeg nunca se interessou por temas convencionais e "A Longa Caminhada" (Reino Unido/Austrália,1971) talvez seja seu exemplo mais radical. O filme, que está disponível no streaming À La Carte, também é sobre estranhos que habitam o planeta Terra, mas neste caso são os próprios humanos, na sua luta pela sobrevivência num ambiente de contrastes absurdos entre a natureza selvagem e a metrópole com suas edificações ultramodernas. Porém, nas duas paisagens o instinto predador parece ser o mesmo.

Em seu site Palavras de Cinema, o jornalista e crítico de cinema Rafael Amaral fez a seguinte observação: “A cidade, coadjuvante, ou menos que isso, aponta à rede de sobrevivência criada pelo homem moderno, sistema para confrontar a natureza em seu sentido bruto e selvagem”. Leia abaixo o texto completo de Rafael.


A Longa Caminhada, de Nicolas Roeg

Por Rafael Amaral


A cidade, coadjuvante, ou menos que isso, aponta à rede de sobrevivência criada pelo homem moderno, sistema para confrontar a natureza em seu sentido bruto e selvagem. Forma de adaptação à sombra dessa mesma natureza que não raro se insinua, ou ataca, ou apenas complica a vida de quem tenta sobreviver a ela.

No início de A Longa Caminhada, a rocha dá vez à parede, que dá vez à cidade; o prédio cresce para além das árvores, a árvore resiste ao concreto que se avoluma. O reflexo das nuvens surge no prédio envidraçado. No interior de uma escola, garotas expõem a respiração ofegante, melhor representação dessa vida em sociedade.

Nesse sistema de prédios, uniformização e paradas cívicas, reina a ansiedade, a dor é acobertada pelo concreto, em prisão discreta à qual Nicolas Roeg enreda o espectador nos primeiros instantes. Ao som de um instrumento tocado pelos aborígines, o didjeridu, o cineasta mostra que do aparente selvagem que escolheu o deserto e a luta pela sobrevivência também emana o som que se assemelha a algo tecnológico, ruído de rádio.

Os dois espaços às vezes se confundem, ou se condensam: da rocha à parede, como se a natureza primeira fosse a mesma, em um alternar sem-fim de formas e configuração de ambientes. A Longa Caminhada inverte a trajetória: uma adolescente e seu irmão pequeno, criados na cidade, vagam pelo deserto australiano, perdidos, após a morte do pai.


Cena do filme "A longa caminhada"

Cena do filme "A longa caminhada"


O filme é sobre uma caminhada de descobertas. Roeg não revela em excesso: seu cinema repousa no mistério, na sugestão, ponto em que o bruto dá espaço ao onírico. Talvez aquele pai estivesse cansado da vida à sombra dos prédios, ao som do rádio, sob a influência que exercem seus antepassados, a vida que criaram para ele.

Decide romper a barreira, assume sua loucura, o que alguns podem chamar de selvageria: decide, no deserto, matar os filhos, e em seguida se suicida. Os jovens escapam. A garota (Jenny Agutter) passa a cuidar do irmão (Luc Roeg) ao sol escaldante. A certa altura, encontram um jovem aborígene (David Gulpilil), que passa a ajudá-los.

O título original, Walkabout, refere-se aos aborígenes que, desde cedo, são lançados à sobrevivência no deserto, obrigados a se “adaptar”. A essa situação os jovens da cidade também serão levados, por algum momento, como os nativos. Despem-se do conforto, experimentam a descoberta, o isolamento, a vastidão de tudo e nada.


Jenny Agutter no filme "A longa caminhada"

Jenny Agutter no filme "A longa caminhada"


O filme todo pode ser interpretado como uma visão do pai, que, de sua sacada, em belo prédio, vê os filhos brincar na piscina. Ao ser transferido ao deserto, o mesmo programa de rádio ouvido por sua mulher, no apartamento, é agora ouvido no interior do carro. Um indicativo de que permanece no mesmo lugar.

Ao redor da menina e de seu irmão, também do aborígene, animais estranhos aparecem entre o deserto. Seres que se adaptaram, que engolem outros, de couraças espessas, feitos àquele espaço seco a ponto de se confundirem com o mesmo. Por ali surgem as moscas, vê-se o fruto podre, as roupas estão sujas. A natureza não é tão bela.

À visão do aborígine, a menina fecha os olhos, por algum tempo, como se não acreditasse no que vê: alguém aparentemente adaptado, à caça de lagartos. Alguém que parece pertencer ao deserto no qual a vida pouco se insinua para além de répteis e insetos. Do rapaz ficam o contato estranho, a dificuldade de compreensão, de mistura.

O crítico Roger Ebert fala dessa barreira em sua análise do filme de Roeg, de “vidas de algum modo destruídas porque duas pessoas não conseguem inventar um meio de esclarecer seus anseios e sonhos”. O filme eleva os sons, os ruídos, a suposta melodia do didjeridu – como se diferentes civilizações conseguissem se tocar.

O mesmo vale para a montagem paralela, entre a carne do canguru arrancada pelo aborígine e a carne golpeada no açougue, antes de ser comercializada. A proximidade é ilusória. Os cortes e o som evidenciam distâncias, aberturas não preenchidas, seres desconectados.


Cena do filme "A longa caminhada"

Cena do filme "A longa caminhada"



Texto completo no blog Palavras de Cinema




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